terça-feira, 28 de março de 2017

O que eu vou fazer com essa tal liberdade?

No início desse ano, pedi às alunas e alunos dos segundos anos do Ensino Médio, depois de algumas discussões, que escrevessem uma crônica sobre Liberdade. Os textos, dos mais variados pontos de vista, fizeram-me refletir sobre inúmeras coisas e - para variar - estudantes me deram um baile na criatividade e em lições.
Dentre os textos, um deles foi iniciado com muitos desvios de ortografia e de norma padrão da Língua, discorrendo sobre a liberdade de escrever sendo uma pessoa com problemas sociais e psicológicos; à medida que eu ia lendo - e me surpreendendo com a escrita, pois era de estudante que eu já conhecia, com excelentes notas e que normalmente não cometia equívocos de ortografia - eu refletia sobre o assunto. Ao final do texto, nova surpresa: uma assinatura. Texto em primeira pessoa, como se fosse uma carta de despedida de alguém que sofria preconceitos das mais variadas formas, inclusive linguístico. Porém, o eu lírico era de quem achou a carta e a transcreveu, refletindo sobre a situação da falta de liberdade de "ser". Um soco na minha cara. Outro texto, descrição da aula, desde o momento em que entrei na sala, até a hora da escritura, em que eu - com a ~autoridade~ de ser professora, - solicitei o texto, sem que alunas e alunos pudessem escolher a temática, dentre outras reflexões acerca do sistema de ensino (!!!!). 
Próxima aula. Outro assunto. Outra turma. Primeiros anos do Ensino Médio. Dia oito de março. Igualdade de gêneros. Identidades. Feminismo(s). Debates. Perguntas. "Professora, por que as feministas não gostam de receber parabéns no dia da mulher?"; "Professora, por que existe dia da mulher e não do homem?"; "Professora, por que as feministas não lutam para ter alistamento militar, ou pela licença paternidade?"; "Professora, feminismo é o contrário de machismo?"; "Professora, mas qual é o tipo de feminismo que não pode se depilar?"; "Professora, mas como existem mulheres que não são feministas?"; "Professora, mas a gente não tem espaço para dar nossa opinião"; "Professora, como eu sei que não estou sendo preconceituoso?"; "Professora, como uma mulher pode oprimir outra mulher?". Tudo ecoava na minha cabeça e eu só conseguia pensar nos textos escritos pela outra turma. Comecei do início, contando quem eu era, por que eu estava ali e por que eu pedi para todo mundo sentar no chão e fazer perguntas.
Ser professora é lidar com pessoas e dúvidas reais, é todo dia ter desafios. Não é como lidar com comentários raivosos de internet, onde as pessoas não estão olhando nos olhos umas das outras. Ser professora é ter consciência de que meus ideais e meus posicionamentos não são a verdade absoluta, é ter o cuidado de responder perguntas refletindo sobre as escolhas das palavras e deixando claro àquelas pessoas que estão na minha frente que elas são livres para criticarem, questionarem ou reformularem certos conhecimentos. Ser professora é saber que estamos em constante formação, é se desconstruir e aprender com as outras pessoas dentro da sala de aula. Ser professora é estar em constante interação. Ser professora é, basicamente, ser uma pessoa. Isso pode parecer redundante, tautologia, mas muita gente não tem consciência disso. Muita gente acha que ser professor é ser doutrinador. Muita gente acha que ser professor é usar sua autoridade para formar um exército de pessoas que pensam igual. Muita gente acha que ser professor é poder limitar os pensamentos de outras pessoas. Muita gente acha que ser professor é ser ditador. Muita gente que acha essas coisas não tem relação nenhuma com Educação, não estudou para ser educador(a) e - na maioria das vezes - nem defende a Educação. De todas as professoras e professores que eu conheço, nenhum deles faz parte dessa gente. 
As respostas das perguntas lá de cima? Foram construídas em conjunto com todas as pessoas que estavam dentro daquele ambiente. Estudantes entenderam que sala de aula é lugar para perguntas. Estudantes entenderam que uma professora pode ter posicionamentos diversos e respeitar opiniões alheias. Estudantes entenderam que Igualdade pode receber vários nomes, alguns chamam de Feminismo (e que não existe só um tipo de feminismo, assim como não existe só um tipo de mulher!). Estudantes entenderam que existem estereótipos sobre inúmeras coisas, sobre feminismo é só mais uma delas. Estudantes entenderam que às vezes somos preconceituosos, mesmo sem perceber. Estudantes entenderam que existem diferenças entre homens e mulheres, mas também existem diferenças entre as próprias mulheres. Estudantes entenderam o que é privilégio. Estudantes entenderam que na minha sala de aula podem questionar, criticar e serem livres para fazerem escolhas, mas que tudo na vida tem consequências. 
Ser uma professora feminista é ter o objetivo de ensinar que sala de aula é lugar de respeitar opiniões, posicionamentos, histórias de vida. Ser professora linguista e feminista é aprender a aceitar que, às vezes, as pessoas têm nomes diferentes para as mesmas coisas e algumas pessoas têm medo de usar certas palavras, porque podem ser socialmente prejudicadas. Ser professora literata e feminista é entender que as subjetividades existem, mas podem ser desconstruídas e, às vezes, isso acontece naturalmente. Ser professora feminista é entender que estudantes são seres em formação, assim como eu. Ser professora feminista é lutar pelos direitos das e dos estudantes serem o que quiserem. Ser professora feminista é vibrar de felicidade quando estudantes querem ser pessoas melhores e lutar do teu lado para que outras pessoas sejam felizes sendo como quiserem.

P.s. Comecei esse post pensando em falar sobre inúmeros assuntos acumulados, sobre o projeto Marias vão com as outras, sobre eu ser libriana e não saber o que fazer com a tal liberdade, sobre o tumor finalmente estar diminuindo... Mas as palavras saem livremente da minha mente para os meus dedos de forma diferente do que eu planejo, então... o que eu fiz com a liberdade de hoje foi esse post. :)